Aurélio Magalhães – Da China Para Casa by Bike

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Hoje vou escrever sobre a mágica que é viajar de bicicleta! Como o fato de estar viajando de bike comove e gera um sentimento de solidariedade nas pessoas na maioria dos lugares onde eu chego! O valor de atos que passariam despercebidos ou sem o devido valor em muitas outras ocasiões, a simplicidade e expectativas mais modestas … Os altos e baixos que mexem com meu humor! E como tudo isso interfere no meu dia a dia e me coloca em contato direto com os locais por onde passo!

Para contar como foi um dos dias mais especiais da viagem, onde tive a oportunidade de mergulhar na cultura nômade, preciso voltar ao almoço do dia anterior…

Paramos para almoçar em uma cidade chamada Mirfelt, no litoral, na parte central do Marrocos. Pacata, ou melhor, quase fantasma, com alguns cafés e restaurantes ao longo da estrada que ao mesmo tempo ceifa e dá vida ao lugar. Os cafés que não estavam fechados tinham um ou outro gatos pingados. Já era bem tarde para almoçar, mais de 15h. E eu estava com uma fome dos diabos!

Enquanto Jordi foi para um lado da estrada, com cara de avenida naqueles poucos quarteirões, eu fui para o outro. Não conseguimos encontrar nenhum restaurante que servisse almoço aquela hora. Seguimos empurrando as bicicletas e um pouco mais a frente, vimos um grupo de estrangeiros comendo em uma mesa na calçada em frente a um restaurante. De longe até parecia movimentado! Fiquei feliz ao vê-los, pois aquilo significava comida! E o morto de fome estava faminto! Aliás, não só eu, Jordi demostrava uma certa irritação. Estava nítido em seus gestos e feições que a fome também o atacava!

Mas… a sorte não queria ajudar de jeito nenhum! Um simples prato de comida! Era tudo que queríamos e buscávamos naquela hora! Era o combustível que ao mesmo tempo nos daria força e aquietação! Éramos como um carro na reserva em frente a bomba de combustível! Prontos para encher o tanque!

“_Só servimos Tajine e nesta época do ano só fazemos por encomenda. Podemos preparar mas levara mais de uma hora!” Ao ouvir isso fiquei puto! Não pelo fato de não ter comida no restaurante aquela hora! Isso é compreensível! Povoado extremamente pobre, baixíssimo movimento e mais de 15h da tarde! Mas eu estava com fome… e nessas horas meu, você vira um animal! Chegar no único vilarejo do percurso com fome e ter a expectativa frustrada é de deixar qualquer faminto ainda mais nervoso! Saí praguejando o dono, o filho do dono, a mãe o pai e fui até a última geração! Em meus pensamentos é claro! Não disse uma palavra, apenas baixei a cabeça e já estava me conformando em comer um pão com polenguinho (único queijo, se é que se pode chamar isso de queijo, capaz de ser encontrado por essas bandas).

Nessa hora as bicicletas entraram e ação! Entre o tempo de chegar, tirar luva, capacete e tudo o mais, os estrangeiros tiveram tempo de nos bombardear de perguntas e ficaram encantados com a nossa história. Quando me viram chateado e frustrado com o fato de não haver mais comida no restaurante, se comoveram e nos convidaram a compartilhar um Tajine de peixe que haviam encomendado pela manhã. A generosidade, como em um passe de mágica, transformou o Tajine de 4 para 6 pessoas. O dono também se solidarizou trazendo uma salada extra, tipo vinagrete, que assim como no Brasil, é muito apreciada por aqui.

Meu humor mudou! Na hora! A raiva se transformou em consolo e um sentimento diferente surgiu! Era a gratidão agora que reinava! Um prato de comida! Mais do que isso! Era o gesto dos novos amigos que me comoveu!

Durante o almoço não tive tempo de pensar no assunto! Fomos bombardeados de perguntas. Aquelas de sempre! Trazendo brilho nos olhos dos nossos novos amigos a cada resposta. Eles estavam a trabalho. Estavam criando juntamente com o governo local, uma estratégia para desenvolver o turismo da região. Na verdade, isso foi tudo que soube deles, um casal canadense, uma jordaniana e um local. O almoço acabou sendo bem divertido! Ficamos com as frutas que sobraram da sobremesa, água e não nos deixaram pagar a conta.

Nos despedimos com abraços calorosos e seguimos a nossa rota.

De volta ao pedal, me peguei pensando em como o fato de viajar de bike, de uma forma ou de outra, comove as pessoas. Mesmo sabendo que não teriam comida suficiente para todos, não exitaram em nos convidar. Foram generosos, simpáticos e demonstraram respeito e admiração. Quais as chances de isso ter acontecido se Jordi e eu chegássemos de carro? Bom, pode acontecer, mas comigo, de bicicleta, acontece toda hora! O Pelé do cicloturimo do Brasil, Antonio Olinto, diz que a bicicleta tem uma magia especial que atrai as pessoas. É isso! Não só atrai como gera compaixão, respeito, admiração, sei lá! Tudo misturado! Muita gente sente a necessidade de ajudar de alguma forma! Quem ajuda fica tão ou mais feliz que o ajudado. O ato de ser generoso conforta, é bom! Neste caso, foi mais um almoço, mas já ganhei grana, GPS, roupas e muito mais. Sobretudo, não é pelo valor… é pelo ato! Cada um ajuda com o que pode ou tem no momento. Eu estou comprovando no meu dia a dia que o mundo é generoso, as pessoas são boas em sua esmagadora maioria. E elas gostam de ser assim! E isso me deixa feliz pacas!

Quem não se sente bem depois de ter ajudado alguém? É ou não é?

Outro dia recebi uma ajuda que mexeu comigo! Era véspera de Natal. Já estava no Marrocos, me aproximando da capital Rabat.

Eu vinha pedalando pensando na minha família. Todos reunidos e é claro que a melancolia apareceu. Eu queria estar lá de alguma forma! Saudade… pensamentos de ternura. Estava ali concentrado no pedal e ao mesmo tempo conversando com meu “inquilino”. Uma música veio a minha cabeça… comecei cantarolar, até que minhas narinas arderam e as lágrimas rolaram.Para estar juntos não é preciso estar perto, e sim do lado de dentro! Me agarrei na frase de Leonardo da Vinci, e segui. Toda aquela melancolia, o tempo nublado o vento contra! Tudo isso deixava o caminho mais difícil. Vinha em meus devaneios meio triste até, aí… em poucos segundos a página virou! Ao mesmo tempo em que o sol venceu as nuvens, estava sendo ultrapassado por uma moto, daquelas que tem carroceria. Um homem sentado, ao me ver, me deu um sorriso e acenou com a cabeça. Li claramente seu gesto de incentivo e respeito. Imediatamente retribui, tirando a mão direita do guidão, batendo a mão serrada no peito! Tum! O cara tão rápido como eu, fez o mesmo movimento, batendo duas vez no peito! Tum tum!

Rapaz! Aquele simples gesto mudou meu ritmo! Um significado imenso! A sensibilidade em ajudar de alguma forma, na única forma que o momento permitiu. Foi o estopim que precisava para me animar. E de alguma forma a minha melancolia foi se transformando em uma saudade gostosa… daquelas que aquece… que eu gosto de ter e sentir!

Jordi e eu, já na boca da noite, escolhemos um bom lugar com vista para o mar para armar as barracas. Cozinhamos e batemos um bom papo durante o jantar. Também discutimos sobre o dia seguinte, como sempre fazemos. A única baixa foi que não tínhamos sinal de internet e não conseguimos prever as pegadinhas meteriológicas causadas pela combinação do inverno, litoral, montanhas e a proximidade do deserto.

Fui dormir contente, com pensamentos confortantes… embora a saudade naquela noite, me deu umas espetadas!

A chuva nos pegou de madrugada! Minha brava barraca resistiu a penca d’água e ao vento forte. Mas meu humor não resistiu! Já estava bravo por ter que guardar a barraca molhada e mesmo não chovendo enquanto desmontávamos acampamento, as nuvens carregadas e escuras, denunciavam a eminência da precipitação. Era possível ver a cortina d’água ao longe… cada vez mais perto!

Bomba! Foi o tempo de desmontar a barraca, e fechar os alforges. Ela chegou! Forte! Gelada! Já estava completamente molhado quando terminei de equipar a bicicleta. Detesto começar o dia molhado! Aceito na boa a chuva me pegar no meio do caminho, mas começar molhado eu detesto! Meu humor ia de mau a pior.

Quando chegamos a praia de Legzira para visitar os arcos, o sol já havia saído, causando alívio e prometendo um dia melhor. A bela paisagem desanuviaram meus pensamentos e rapidamente voltamos a pedalar com alegria. A estrada era bem bonita!

Paramos para almoçar em Sidi Ifni. Penduramos as barracas para secar e com isso gastamos mais tempo no amoço, comprometendo nosso cronograma. Mas a males que vem pra bem! Ainda meio puto com o tempo “desperdiçado” para secar as tendas, recebemos uma notícia que me deixou ao mesmo tempo feliz e desanimado. Vejam vocês a intensidade e variações dos sentimentos!

Uma das barragens do rio Lkrayama não conseguiu segurar o volume de água da chuva e a ponte na saída da cidade ficou submersa. Embora no primeiro  momento fiquei feliz em saber, já que a ponte fica a mais ou menos 6 km de onde estávamos, o que na verdade se transformariam em 12 km ida e volta (cerca de uma hora e meia devido ao relevo), a decepção veio ao constatar que não conseguiríamos cumprir o planejamento estabelecido para o dia, pois nosso trajeto aumentaria 30 km. Mesmo assim, decidimos por seguir viagem pela rota secundária, mais longa e com relevo muito mais acentuado.

Se as barracas não estivessem molhadas certamente daríamos com a tropa n’água, e teríamos que voltar. E ficar sabendo disso apenas quando nos deparássemos com a ponte, certamente aumentaria a frustração.

Embora o fato de ter que fazer mais força para escalar azucrinou a minha cachola por algum tempo, o dia bonito e a linda estrada entre as montanhas e o mar dissiparam a minha frustração. Resolvi esquecer o fato e me contentar em dormir onde desse, afinal, cicloviagem é assim… improviso e flexibilidade são quesitos indispensáveis!

É! É fácil falar né?! Mas quando fizemos uma curva de 90⁰ para a esquerda, dando as costas para o mar, nos deparamos com as montanhas bem a nossa frente! Quer queira ou não, bate um martírio! Se estivéssemos na outra estrada a essa hora, as grandes montanhas já estariam para trás, e estaríamos chegando ao nosso objetivo do dia… Essa era a nossa zona de conforto! Nossa meta! Não é que me sentia inseguro, mas o imprevisto trouxe algumas incertezas, acentuadas pelas nuvem se formando novamente.

Antes de iniciar a escalada, bem próximo a bifurcação, turistas belgas nos pararam na estrada. Eles vinham no sentido oposto.  Fizeram questão de nos alertar sobre uma nova ponte inundada. Já sabíamos e por isso encararíamos as montanhas. Mesmo assim agradecemos e recarregamos nosso estoque de água, mesmo sem precisar. Fizeram questão! Mas uma vez pude sentir o carinho e o cuidado com a gente.

Enquanto comíamos as frutas que sobraram do almoço, e nos preparávamos psicologicamente para encarar as montanhas, um outro senhor parou para nos dar a mesma informação.

Teríamos uma hora para o pôr do sol! O campo vasto que a primeira vista parece oferecer disponibilidade de sobra para colocar a barraca, ao ser examinado com mais cuidado, revela-se extremamente pedregoso, com arbustos e galhos secos espinhosos, tornando difícil achar um bom lugar para acampar.

Jordi e eu subíamos com determinação! As longas conversas cessaram, e depois de um tempo ligamos o radar para achar um lugar para passar a noite.

No céu as nuvens iam de mal a pior… aumentando o nosso alerta!

Os amigos do almoço do dia anterior, surgiram em um 4×4 no sentido contrário. Pararam e é claro que fizemos uma pequena celebração! Trocávamos abraços quando a chuva veio sem dó! Rapidamente nos despedimos! Eles entraram no carro e partiram. Vi compaixão nos olhos deles. Jordi e eu ficamos debaixo de uma torrencial chuva, sem pai nem mãe!

Jordi avistou uma passagem de água sob a estrada e fomos para lá nos abrigar! Minha preocupação era a chuva parar antes de anoitecer. Ainda era preciso achar um lugar para as barracas.

Para nossa surpresa, um homem com turbante e traje típico também usava a passagem de água para se proteger. Nos recebeu com um sorriso! Logo em seguida chegou Hamsee, um de seus filhos, que conseguia arranhar um pouco o francês.

Enquanto a chuva caía e a enxurrada começava a inundar o nosso abrigo, Hamsee conversava com Jordi, que também arranha o francês. A chuva durou cerca de 15 minutos. Tempo suficiente para eu perceber que ali, com aqueles nômades, tínhamos a chance de dormir abrigados e ainda conhecer de perto um pouco dessa cultura, que aos poucos, vai se extinguindo da face da Terra. Na Mongólia, pude aprender e receber o carinho dos nômades pela primeira vez. Depois foi na Turquia, e tinha certeza que no Marrocos eles não seriam tão diferentes. É um povo hospitaleiro, que mesmo vivendo com simplicidade, sempre compartilham o que possuem.

A experiência ajuda nessas horas. Senti que seríamos bem recebidos! Já tinha passado por alguns momentos semelhantes nesses mais de 3 anos de viagem. Dei um toque para o Jordi perguntar se poderíamos passar a noite com eles. O Catalão se surpreendeu um pouco com meu pedido, mas foi em frente. Hamsee abriu um sorriso e gritou algumas palavras em árabe para seu pai , que examinava as nuvens, com a chuva bem mais amena naquele momento. Com um breve olhar de consentimento e um gesto com a cabeça, o velho deu o sinal afirmativo!

Não demorou muito e nossos anfitriões começaram a demonstrar todo o carinho e generosidade com os viajantes. Eles sabem que como eles, somos também um pouco nômades viajando de bicicleta.

Nos levaram até o acampamento e nos ofereceram leite de cabra que haviam ordenhado a pouco como boas vindas. Eu vi os filhotes sendo soltos quando estávamos a caminho do acampamento. Eles são soltos logo depois da ordenha para mamar e passar a noite ao lado das mães. Assim como na Mongólia, estamos na fase de reprodução. E leite é farto nesta época do ano. Um berreiro angustiante entre filhotes famintos e mães saudosas inundam o acampamento nessa hora! Jordi se mostrava preocupado em saber como pegaria no sono com esse berreiro, enquanto eu ria da sua preocupação! Um jumento, vez ou outra, zurrava, parecendo pedir silêncio, deixando a orquestra ainda mais engraçada e a certo ponto desesperadora para Jordi.

Aos poucos, a medida que mãe e filhote se encontravam, o frenesi ia diminuindo, até que a noite chegou e tudo ficou em silêncio.

Hamsee, o irmão Petit Garçom (apelido de família) e eu. Acampamento nômade. Marrocos.
Hamsee ordenhando o nosso leite. Acampamento nômade. Marrocos.

Uma amiga me perguntou como me comunico nessas ocasiões. É claro que se perde muito de detalhes, pois a comunicação é simples, direta! Uma palavra, um gesto, uma mímica, o dedo indicador mostrando algo, dá sentido as perguntas… ao mesmo tempo que dão as respostas. Não é possível se aprofundar! Eu costumo dizer que quando existe o desejo´das duas partes, de alguma forma, a comunicação acontece. Presta-se mais atenção aos detalhes e muitas perguntas torna-se desnecessárias. Neste dia, por sorte, Hamsee e Jordi conseguiram ir mais além, o que deixou o encontro ainda mais rico.

O anfitrião Hamsee, Jordi e eu. Acampamento nômade. Marrocos.
Iniciando os preparos para o jantar. Acampamento nômade. Marrocos.
Os miúdos sendo divididos pelo chefe da família. Ele divide e é o último a se servir. A ideia de ser o mais justo possível. Acampamento nômade. Marrocos.
A vez do prato principal. Macarrão com cordeiro. Todos comem com as mãos do mesmo prato. Acampamento nômade. Marrocos.

Quando as lamparinas se apagaram, coloquei minha cabeça no travesseiro que fiz com as minhas próprias roupas, e me senti realizado. Foi inevitável pensar nas surpresas da vida! Como um caminho bloqueado, uma decepção momentânea, pode fazer desabrochar um novo horizonte, e se transformar em uma experiência rica e inesquecível! A necessidade de fazer um outro caminho. Um reencontro exatamente no momento em que a chuva caia, que nos obrigou a buscar abrigo. A ponte interditada. O tempo para secar as barracas. Como pequenos acontecimentos vão moldando a história do nossos dias? Se não estivesse chovendo ou se cruzássemos com nossos amigos um quilometro mais a frente, certamente nada disso teria acontecido. Sorte? Universo conspirando? Energia? Sei lá eu! Só sei que a bicicleta é mágica! Como costumo dizer, a bicicleta oferece a velocidade ideal para me colocar em contato com as pessoas, me mostrar e me ensinar muita coisa que ainda preciso aprender ou que me falta para ser uma pessoa cada vez melhor. E dias como esses são a prova disso!

Lá vou eu… colecionando emoções, vivendo um sonho… cada dia mais perto de casa!

Lugar onde passamos a noite vista da estrada que nos levaria para longe. Acampamento nômade. Marrocos.

No mesmo dia que partimos do acampamento, chegamos ao deserto do Saara. Agora, serão mais de 1000 km para cruzar o maior deserto do mundo.

 


 

A viagem ao redor do globo continua. Suba na garupa e venha comigo nesta aventura!

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