A primeira foi em 2009, quando fiz a caminhada ao Acampamento Base do Everest. Uma viagem de aventura que pelas dificuldades, é inevitável fazer uma análise interior. Nesta viagem, encontrei algumas respostas e no pé da montanha mais alta do mundo decidi buscar um novo estilo de vida, que realmente fizesse sentido e completasse as minhas ambições. Além de ser um dos lugares mais lindos que já visitei, hindus, budistas e muçulmanos, convivem em harmonia, tramando uma diversidade cultural e religiosa enraizadas na realidade do dia a dia, com crenças muito diferentes das nossas, fazendo do Nepal um lugar que ao mesmo tempo choca e deslumbra. Apesar dos diferentes grupos étnicos, os nepaleses se caracterizam pelo sorriso puro e simpatia, tornando Kathmandu a capital mundial do sorriso, mesmo sendo um dos lugares mais pobres do planeta. Eu conheço algumas pessoas que já visitaram o Nepal e todos são unânimes em afirmar que de alguma maneira, mudaram sua forma de pensar e ver a vida.
Não foi diferente comigo!
“O vídeo acima mostra mulher tomando banho nas águas do rio Bagmati, um rio considerado sagrado por hindus e budistas, no Templo de Pashupatinath ( Templo das cremações).
A imagem choca, pois o rio recebe todo o esgoto da região sem nenhum tratamento, deixando sua água com forte odor e aparência péssima.
Pashupati significa “o senhor e protetor de todos os seres vivos” e aqui seria o lugar em que Shiva teria repousado.”
Do Nepal, voltei com a ideia de planejar uma grande viagem de bike, um sonho guardado na gaveta, onde criei o conceito de juntar meus hobbies em um grande desafio: viagem de aventura, gastronomia, fotografia e busca por novas culturas. E assim nasceu o Projeto Noruega by Bike, finalizado com o lançamento do livro em agosto de 2011, e já no mês seguinte, eu já estava trabalhando em um novo projeto chamado Ásia by Bike, que foi renomeado de Da China para Casa by Bike, responsável pelo meu retorno ao Nepal. (Saiba mais sobre o livro Noruega by Bike)
Cheguei em Kathmandu na véspera da tragédia em um cansativo voo noturno com escala em Seul, vindo de Ulan Bataar, capital da Mongólia. Estava empolgado! Afinal, voltava ao lugar onde tudo começou, com a expectativa de fazer um novo trek nas montanhas do Himalaia e seguir viagem pedalando pelo interior, até cruzar a divisa com a Índia (Banbasa), no extremo oeste do país. A longa espera na fila da imigração e a confusão na esteira de bagagens me traziam uma paz difícil de explicar. Todos muito contrariados e aflitos com a confusão de sempre no aeroporto, e eu, parecendo estar em outra dimensão, feliz por viver aquele caos novamente. Sabia que de alguma forma, tudo iria dar certo!
Cansado e ainda sem um mapa da região, coloquei a caixa da bicicleta no pequeno táxi e segui para o bairro de Dilli Bazar, cerca de 2,5 km do Thamel (lugar mais atingido pelo terremoto, o bairro central da cidade, onde ficam a maioria dos turistas e as maiores atrações culturais e históricas de Kathmandu). Consegui hospedagem na casa de um professor norte-americano via warmshowers, caso contrário, muito provavelmente, estaria no Thamel na hora do desastre. A casa de Dhane Blue fica entre um emaranhado de vielas onde não há espaço para os carros, com postes improvisados, fios emaranhados, lixo espalhados nos terrenos baldios e chão de pedras soltas e barro. Enquanto adentrava ao bairro carregando a caixa da bicicleta, logo associei o lugar as favelas do Brasil.
A casa onde estou é relativamente segura. Não sofreu nenhuma rachadura com os tremores. A casa não possui geladeira, vaso sanitário, e a água sai marrom das torneiras, mas considero que pelos padrões da Kathmandu, estou bem instalado.
Na casa também moram dois garotos locais. Suva de 18 anos, que divide o quarto comigo e Karun de 13. Professor e aluno respectivamente da mesmo escola em que Dhane Blue leciona.
Conversava com Suva sobre fotografia. O garoto muito interessado, gosta de trabalhar com photoshop, e fazíamos um plano para fotografar a cidade nos próximos dias quando o chão tremeu levemente, ao mesmo tempo em que a energia foi cortada. Frações de segundos depois, veio o grande tremor…
Eu demorei um pouco a perceber o que estava rolando… ele, rapidamente se levantou e me arrastou correndo para fora de casa. Enquanto atravessávamos o quarto, o tremor foi aumentando, chacoalhando tudo, fazendo um barulho danado! Os utensílios de cozinha foram ao chão, os vidros das janelas á um triz de se quebrarem… a estrutura do prédio balançou, acompanhando o chão que nos fez esbarrar nas paredes e batentes enquanto o medo e o desespero foi aumentando… O que é isso? Ataque terrorista? _ Earthquake man! _ Earthquake man! Gritava Suva, sem largar a manga da minha camiseta.
Dhane Blue conseguiu sair da casa alguns poucos segundos depois. Desorientados e com medo, seguimos em direções contrárias no instante em que outro tremor, ainda maior aconteceu. Um muro desabou, fazendo Blue retornar para a nossa direção. Pude ver seu semblante apavorado surgindo em meio ao poeirão que o cobriu por completo. Fomos ao chão por duas ou três vezes! Hora o chão nos jogava para um lado, hora para outro. Por sorte, no momentos em que caímos por cima de uma cerca de bambu de uma pequena horta, o muro do terceiro andar de uma casa veio abaixo, inteiro, se espatifando a menos de 3 metros das nossas cabeças. Pude sentir os estilhaços me atingindo… enquanto que desta vez, éramos nós que estávamos sendo encobertos pela poeira… ainda com o chão tremendo. Se caíssemos para o outro lado como no instante anterior, seríamos atingidos em cheio! Nos sentamos e nos seguramos uns aos outros… O barulho oco do muro se espatifando no chão parecia não sair da minha cabeça!
Quando tudo parecia mais calmo, corremos ao pátio aberto de um colégio e aos poucos a população foi chegando também… Todos muito assutados… Minutos depois, outro tremor de menor escala, mas suficiente para nos levar ao chão! Uma agonia! Mães com as crianças no colo, família e amigos se abraçavam na tentativa de confortarem uns aos outros. Rostos pálidos de medo! Os tremores se seguiram por horas, variando a intensidade e a cada tremor gritaria e apreensão.
Cerca de 15 minutos depois do grande tremor, mandei uma mensagem de texto para a minha família contando do terremoto e que estava tudo bem comigo. Depois o sistema 3G entrou em colapso e a comunicação passou a ser um desafio. Para piorar, sem energia elétrica, não tínhamos como recarregar as baterias dos celulares, computares e tudo mais.
O terremoto ocorreu ás 11:56h. Por volta das 16h, com tudo mais calmo, resolvi seguir para o centro da cidade, ainda sem saber a verdadeira dimensão da tragédia. Não tínhamos acesso a notícias, e as poucas informações que chegavam eram conflitantes vindas de pessoas que voltavam da rua. “Muitas pessoas mortas.” “Terremoto de magnitude 7.8.” “Quase ninguém morreu em Kathmandu, o problema foi no interior.” “Muita gente morreu em Kathmandu.” “O terremoto foi de 5,8 de magnitude.” “Caiu a torre da cidade.” “Vai faltar água e energia por uma semana.” “Vamos ter que dormir aqui no pátio do colégio.” “Dizem que o Thamel foi devastado.” “Vai ter mais terremoto a qualquer momento.” Foi assim que as informações foram chegando até mim… dependo do lugar que a pessoa estava voltando ela contava uma história diferente. Estava ansioso, curioso e aflito para saber a verdade.
Suva foi comigo. As informações que ele me dava não condizia com a realidade que eu estava encontrando. Milhares de pessoas mortas, prédios destruídos, muita confusão na cidade. Eu não via nada daquilo! O bairro de Dilli Bazar estava estranhamente desabitado e não mostrava nenhuma evidência de um terremoto devastador. Um muro ou outro destruído era tudo que vimos por ali. O fato de ter poucas pessoas nas ruas, era a única coisa que destoava da Kathmandu que eu conhecia até então. Aqui, há sempre muita gente nas ruas!
No entanto, o panorama foi mudando á medida que nos aproximávamos da Durbar Square, a praça mais famosa de Kathmandu, com vários templos e prédios históricos. Cruzamos uma praça já tomada por barracas e tendas improvisadas com muitas famílias desabrigadas. Aglomerações de pessoas, ruas bloqueadas, caminhões do exército, policiais apitando e gesticulando tentando impor a ordem, ambulâncias em alta velocidade, gente correndo para lá e para cá… e ali, diante daquele caos, pela primeira vez, caiu a ficha de que aquele povo que esbanja sorriso e simpatia sustentava agora um semblante triste, amargo, desiludido. Percebi que os maiores patrimônios dos nepaleses, o sorriso e o conjunto arquitetônico da Durbar Square, haviam desaparecido… Eu começava a entender o tamanho da tragédia.
Meus pensamentos, em devaneios, misturavam as emoções e lembranças que tinha daquela magnífica praça de anos atrás, com os templos completamente destruídos bem à minha frente. Uma lágrima rolou. Fui tomado por um vazio inexplicável. Do chão, olhava para o alto dos destroços do templo que em 2009 passei horas sentado, admirando o visual… me vendo lá em cima… Naquele dia, havia acabado de voltar do trek do Everest decidido a encarar a vida de uma maneira diferente… cheio de autoestima, entusiasmo e coragem… Entre uma foto e outra, meus pensamentos buscavam encontrar a melhor direção a ser seguida. Nunca vou me esquecer daquele dia!
No caminho de volta para o colégio me sentia deprimido, sem vontade de conversar. A terra continuou tremendo durante toda a madrugada. Por volta das 5:35h da manhã um tremor com mais intensidade deixou todos apavorados novamente. Eu não mais sentia medo! Sentia tristeza! Angústia! E esse sentimento se transformou em vontade de ajudar de alguma forma. Ficamos sem energia por 36h. Uma boa surpresa em meio ao caos. Todos apostavam em muito mais tempo sem energia. O Thamel por exemplo, só teve a energia restabelecida depois de 7 dias. Só então as notícias chegaram com mais precisão.
Muitos me perguntam sobre como foi o resgate das pessoas em meio aos escombros e se vi muita gente morta. Não! Eu não me sinto capaz de entrar em prédios condenados com segurança. Não tenho treinamento para isso! Vi alguns corpos ocasionalmente e muitos feridos. Me voluntariei fazendo um trabalho de profilaxia, contenção de epidemias e conscientização, espalhando bactericida em acampamentos de desabrigados e lugares com grande número de pessoas, explicando a importância de manter o lugar limpo. Foram 3 dias até que o nosso suprimento acabou. Depois, ajudei na distribuição de água e alimentos, carregando caminhões; na limpeza e desinfecção de áreas de emergência de dois hospitais; e na remoção de escombros na Durbar Square.
Dois dias atrás adoeci. Dor de cabeça, leve diarreia, e um pouco de febre durante a noite me fizeram pensar em cólera. No manhã seguinte, já sem diarreia, arrotos com cheiro de enxofre, ou ovo podre, me sugeriram giardia. Tomei medicamento e me hidratei. Também achei melhor não sair de casa e me resguardar, interrompendo por um tempo o trabalho voluntário. Afinal, estou em viagem de bicicleta e sei da importância de manter minha saúde em dia. Hoje já me sinto 100% e fiz apenas uma caminhada até o Thamel, que parece voltar ao normal. Agora apenas poucas lojas em prédios condenados estão fechados.
Embora ainda não tenho uma data específica para deixar Kathmandu, amanhã começo meus preparativos para iniciar o pedal. Pela manhã, com a promessa de reabertura da Embaixada da Índia, vou aplicar meu visto que pode demorar de 4 a 10 dias. Também aguardo um par de pneus que comprei pela internet vindos da Alemanha. Nesse meio tempo, pretendo continuar ajudando como voluntário. Ainda tenho que tirar a bike da caixa e montá-la, comprar gás para meu fogareiro de cozinha, repelente, protetor solar e preparar meu estoque de água e comida.
Infelizmente o governo fechou todos os treks do país, e ainda não tem uma data de reabertura. Também estou levando em consideração encurtar a rota no Nepal, entrando antes do previsto na Índia. É uma decisão que vou tomar de acordo com os fatos. Dizem que o abastecimento de água e comida em alguns lugares está muita abaixo das necessidades.
A cidade está coberta por uma nuvem de poeira. Com problemas na coleta de lixo e a falta de saneamento básico, o mau cheiro prolifera em algumas áreas. O calor e ar extremamente seco, deixa garganta, olhos e nariz irritados ou ressecados. Vez ou outra o chão ainda treme por aqui! Com mais frequência, sentimos um pouco de ondulações, como marolas passando por um barquinho. Bem de leve!
Quis o lado bruto do destino, que o Nepal marcasse mais uma vez a minha vida. Certamente, nunca vou esquecer essa experiência!
Para os nepaleses, fica meu sentimento de tristeza e solidariedade, e a esperança que esse povo forte e tão amável, de sorriso puro e cativante, encontre forças para se reerguer e superar um dos momentos mais difíceis da sua história recente.
Para mim, que estou vivendo a maior aventura da minha vida, vivenciar uma tragédia de tamanha dimensão, e consequentemente o maior risco de morte que já passei, ironicamente com a minha bicicleta dentro de uma caixa, me traz à lembrança uma frase que meu velho pai sempre diz: _ Para morrer, basta estar vivo!
E isso fortalece o meu conceito daquilo que eu sempre digo: _ Aproveite a vida!
ONE LIFE, ONE CHANCE!
NAMASTÊ!
Respostas de 4
Muito linda e triste sua leitura. Percebemos que a vida pode mudar de uma hora para outra. E transformar tudo em caos. Parabéns por ajudar essas pessoas. E força na sua caminhada. Estamos aqui torcendo e “pedalando” junto com você. Beijos
Oi Mi, que legal saber que vc está na minha garupa! Fico feliz!
Obrigado pelo carinho e palavras de apoio.
Saudade! bj
Oi Aurélio,qta emoção!!
Sabíamos que vc não iria deixar a peteca cair.
Siga em frente, que nós estamos aqui, torcendo por vc.E temos certez que vc terá muitos casos para nos contar em muitos jantares que virão pela frente.
Um gde ab, Claudia , Fernando Gu e GUI.
Muito obrigado Claudia… é bom receber o carinho e apoio de vcs! Um bj em todos…