Aurélio Magalhães – Da China Para Casa by Bike

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Um difícil recomeço pós terremoto! Kathmandu – Pokhara – 208 km

Eu já estava louco para colocar a bicicleta na estrada! Só não espera que meu recomeço seria tão ruim! Cometi erros, surpresas e a falta de cuidado em alguns detalhes, combinados, resultaram nos dias mais difíceis que enfrentei em cima de uma bike. Peguei carona nos últimos 12 km até Pokhara. A essa altura, não era mais o cronograma que importava, e sim a minha saúde!

Dia 1 –  Um dia depois do segundo grande terremoto. Acordei por volta das 5h da manhã. Dormi ligeiramente mal, temendo novos tremores e com a ansiedade de cair na estrada. Com o raiar do sol já estava na periferia, em uma área bastante atingida pelos tremores. Vi muitas construções demolidas e famílias garimpando os escombros em busca de sobreviventes e pertences.

Periferia de Kathmandu -    família vasculhando os escombros de uma casa ao lado da rodovia.
Periferia de Kathmandu – família vasculhando os escombros de uma casa ao lado da rodovia.

Veio à mente as emoções que vivi durante esses dias… Angústia! Destruição, desolação e medo! Na minha cabeça, flashes da Durbar Square que conheci em 2009 se alternavam com as imagens de destruição de agora. Dois momentos marcantes na minha vida.

Um repente, e sem querer, minha mente vai buscar a lembrança de um olhar de desespero de uma mãe… o pai de família sem esperanças e parecendo não ter forças para recomeçar… a inocência de um sorriso de uma criança que ainda não consegue dimensionar a tragédia… a casa no chão… o sonho destruído… a alma ferida… o apego as divindades… O trabalho voluntário me colocou frente a frente com as verdadeiras cicatrizes que uma tragédia como essa deixa na alma das pessoas e na minha também… Sensibilizado, cheguei a colocar em xeque a minha decisão de partir neste momento. É difícil partir e deixar esse sentimento para trás. Segui o meu instinto!

... buscando consolo na fé.
l … buscando consolo na fé.

Kathmandu fica dentro de um vale que se encontra a 1400 m de altitude, ao contrário do que muitos pensam, faz calor e o ar é seco. Como todo vale tem uma borda, iniciei o pedal escalando cerca 300 metros. Subida longa, não super inclinada, mas que exigiu força o tempo todo. Depois do trabalho árduo, veio a recompensa! Um ladeirão de 30 km aproximadamente, daqueles que todos os ciclistas gostam… Visual show, pedala só na boa, leva no freio, serpenteando o vale…

Um lindo visual na saída de Kathmandu.
Um lindo visual na saída de Kathmandu.

Com o tremor do dia anterior, havia menos movimento na estrada que o esperada, no entanto, motoristas ensandecidos em frota antiga e mal cuidada, sem acostamento, buracos, ondulações, velocidade e peso da bike, exigiam cautela. Um fato bastante curioso foi perceber que a preferência na estrada é de quem vem embalado! Aqui meu irmão, buzinou, sai da frente que vem um motorista doido, aproveitando o embalo da toada que conseguiu engajar. É normal o veículo que esta sendo ultrapassado frear, assim como quem vem do outro lado, para facilitar a ultrapassagem.  Você vê cada fina, meu!!!  Tem que ficar esperto! Com outras “lógicas”, acontecem coisas que não pertencem a vivencia do nosso dia a dia. Nas estradas do Nepal, buzinou… sai da frente! Já entendi!

Olha como são a coisas… No meu post anterior, tracei um paralelo entre os riscos e a preparação necessárias para executar um grande projeto como o meu. Escrevi que a minha experiência em viajar de bicicleta, conhecimento e preparação, não me isentavam dos riscos e de cometer erros. Quem leu lembra! Pois é! Nos 208 km que separam Kathmandu e Pokhara, cometi vários pequenos erros, que associados a imprevistos, falta de atenção e algumas surpresas, me levaram a exaustão! Cheguei em Pokhara esbagaçado! Eu explico!

O descidão me levou direto para uma panela de pressão. Quando parei para comer alguma coisa, meu amigo, a temperatura perto dos 36° C, em meio a umidade da floresta temperada, me causaram a sensação que estava cozinhando… a cabeça fervendo. Quanto mais a temperatura corporal sobe, mais difícil se torna manter a performance. Nestas condições, nosso organismo sofre ajustes metabólicos e fisiológicos tentando proteger a nossa integridade física. Com a alta umidade, a transpiração, que é o principal mecanismo de resfriamento corporal reduz a sua eficácia, pois o ar úmido atrapalha a formação das gotas de suor, que quando evaporadas, reduzem drasticamente a temperatura do corpo. E isso é fatal na prática esportiva! Embalado pela deliciosa descida, cometi mais um erro, bebendo menos água do que deveria. Mais preocupado em achar um lugar seguro para comer, não dei relevância para os fatos naquele momento. Era um alerta que passou despercebido naquele momento!

No período da tarde, a estrada continuou sinuosa, porém, agora com muito sobe e desce. Eu já estava um bom tempo sem pedalar devido as consequências do terremoto, e o fato de estar mais pesado com provisões me fizeram terminar o dia bem cansado. Segundo as informações, havia muitos lugares que passavam por dificuldade de abastecimento. No caminho entre Kathmandu e Pokhara essa informação não procede. Tudo funcionando bem! O problema é encontrar um lugar que passe alguma segurança para comer. A comida exposta ao forte calor, sem proteção ou refrigeração, tornam cada refeição uma roleta russa!

Momo - Prato típico da cozinha nepalesa. Massa recheada com búfalo, frango ou vegetais que lembra o guioza, prato japonês.
Momo – Prato típico da cozinha nepalesa. Massa recheada com búfalo, frango ou vegetais  servida com molhos de diferentes especiarias que lembra o guioza, prato japonês.

Já na boca da noite, enfrentando uma dura subida, fui me aproximando de Shakti, um nepalês carregando água morro acima, para abastecer sua casa lá no alto da vila. O esforço demonstrado na face. Ele também entendeu o meu cansaço. Paramos ao mesmo tempo! Nos apresentamos e ele me explicou as dificuldades que a vila vem enfrentando. Disse que todos estão com medo, dormindo em barracas improvisadas e que algumas casas foram demolidas e outras estão condenadas, mas por sorte ninguém morreu. É o papo do cotidiano por aqui! Acabei dormindo ali!

Meu plano era comer em algum lugar durante o dia e cozinhar no jantar. Mudei! Resolvi cozinhar até ficar com a quantidade normal de suprimentos. Afinal, vou fazer uma longa parada no meio do dia e vai sobrar tempo para isso. O calor está muito forte! Essas são as adaptações e ajustes que vou fazendo em cada país até encontrar o ritmo ideal.

Durante a noite fez um calor tremendo na barraca. Acordei com a boca e a garganta secas e o corpo molhado de suor! Mais uma noite de sono ruim.

E suas irmãs. Nepal
Shakti e suas irmãs. Nepal

Dia 2 – Cai na estrada perto das 8h. Muito tarde! Eu pensando: _ Preciso ir embora, o calor vai me pegar! Mas o papo com Shakti e suas irmãs estava tão agradável que nem vi o tempo passar. Meu café da manha foi apenas um chá e alguns biscoitos.

O sol veio bruto e a temperatura atingiu 36°C! O sobe e desce não teve piedade! Em Mugling, havia chegado no fundo do vale a 250 m de altitude e agora até Pokhara teria que voltar a 850 m. A pior parte estava por vir… Não apenas pela diferença de altitude, mas principalmente devido as ondulações, acumulando quase o triplo de subida total.

Melancia em Mugling... sedento!
Melancia em Mugling… sedento!

Poderia ter ficado ali por mais tempo, mas julguei erroneamente que cumprir o cronograma seria mais importante naquele momento. Cansado, diminuía a velocidade nas descidas para  ficar mais tempo descansando e me refrescando antes da próxima ladeira. E ali fui… perrengando e progredindo como deu. E pela primeira vez em toda a minha vida, praguejei contras os Deuses, pedindo um pouco de vento… em qualquer direção! Ar morto! Batendo pesado, parecendo bafo de “beque de várzea” no cangote! Manja?

Em Anbukhaireni parei novamente, preparei uma salada de feijão, atum, azeite e cebola e comi sem o menor apetite. Descansei na rede por 2h e segui viagem, a duras penas! Pedalei mais um pouco e quase sem forças resolvi parar em uma vila logo depois de Dumre, em meio a outra subida íngreme. Senti eminência de câimbras ao desmontar da bicicleta.

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Acampamento perto de Dumre – Nepal

Uma crosta seca na minha testa e na minha roupa me revelaram a quantidade de sal e consequentemente de água que havia perdido. Ali que a minha ficha caiu. Forte calor, umidade, desidratação, noites mal dormidas, carregando mais peso, dias parados, stress com o terremoto, alimentação com baixo teor nutricional. Além do mais, forcei um pouco o ritmo para tentar cumprir o cronograma. Esses fatores somados foram me definhando… Para piorar, eminências de câimbras surgiam em todas as partes do meu corpo. Principalmente pés, mão e costelas. Minha vista embaçava de vez em quando, ligeira dor de cabeça, um leve zumbido no ouvido. Naquele momento nem mesmo as crianças que sempre me cercam conseguiram me animar. Pedi licença, fechei o zíper da barraca e deitei para descansar.

A primeira meia hora na barraca serviu para eu mentalizar os procedimentos que deveriam ser tomados. Comecei um processo de hidratação eficiente bebendo água devagar e constantemente. Logo escureceu, e com isso as crianças se foram. Pude preparar um macarrão com atum que comi mais uma vez sem vontade. Fiz um alongamento leve! Já houve dias muitos mais intensos nas minhas viagens, mas nunca me senti tão cansado em toda a minha vida. Não conhecia esse tipo de fadiga.

A última vez que olhei o relógio já se passava da meia noite e meia. Reservei um hotel em Pokhara apostando que levantaria melhor. Estava dolorido e com calor. Meu relógio despertou as 4h. Definitivamente, evitar o meio do dia passou a ser prioridade. Comi o resto do macarrão que sobrou, mais uma vez sem apetite e com tudo pronto caí na estrada. Me sentia melhor, mas ainda cansado.

Dia 3 – Estava a 70 km de Pokhara. O terceiro dia começou com uma longa subida de 7 km. Em 4 horas e meio de pedal alcancei a metade do caminho. Só consegui comer 3 bananas. Armei a minha rede debaixo de um toldo de zinco, estacionei minha bike ao lado e descansei. Dormi pesado cerca de 3 horas. Quando acordei me senti fervendo novamente. O sol havia contornado as árvores e agora castigava o zinco. Acordei dentro de um forno e não sei por quanto tempo fiquei ali. Me senti fraco! Outra vez a cabeça transpirando muito! Para ficar em frente de um ventilador, arrisquei comer em um pequeno restaurante. De novo sem o menor apetite!

Rio Trisuli serpenteando as montanhas do Nepal
Rio Trisuli serpenteando as montanhas do Nepal

O fato de ter reservado o hotel me forçava a seguir em frente. Fui definhando, passando a ficar cada vez mais complicado progredir. Fiz inúmeras paradas! Difícil manter a concentração.  O GPS mostrava apenas 11,76 km do hotel. Era pouco! Mas para mim deu! Nas condições que eu me encontrava, aquela distância representaria pelo menos uma hora e meia de pedal. Cheguei mais longe que os limites que normalmente estabeleço. Tive alguns sinais de câimbras novamente, e a vista tornou a ficar embaçada. A minha preocupação agora passava ser a minha saúde. E as minhas opções eram: Ou eu monto a barraca aqui em qualquer lugar e arrisco mais uma noite de sono, ou dou um jeito de chegar a Pokhara.

A primeira camionete vazia que passou, parou! Um casal. Me deixaram na porta do hotel! Fiz check-in, tomei um banho, organizei as prioridades. Era preciso descansar, hidratar e nutrir meu corpo. Afinal, o verão se aproxima, podendo piorar as coisas.

Falta de informações confiáveis, pequenos erros, surpresas, menosprezo de alguns sinais e detalhes. Acabo de completar um ano e meio de viagem, e já vivenciei muitas dessas situações de forma isoladas sem grandes danos. Contudo, desta fez, a combinação foi me minando, traiçoeira, aproveitando os meus descuidos, me colocando frente a frente com os meus piores dias na estrada se tratando de rendimento e fadiga. Talvez, o lance dos terremotos associado a minha auto-confiança, tenham trazido um relaxamento natural me fazendo perder um pouco o foco. Às vezes sinto-me tão seguro que momentos como esse são críticos para me colocar de volta a realidade.  Tudo para me manter sempre alerta, e me lembrar que estou longe de ser de ferro! Sigam na garupa!

 


 

A viagem ao redor do globo continua. Suba na garupa e venha comigo nesta aventura!

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12 respostas

  1. Como você mesmo disse riscos e imprevistos podem acontecer em qquer lugar. Retome o foco e força no pedal pque #tamojunto. Bjs e se cuida.

  2. Longe, muito longe de querer comparar minhas curtas cicloviagens com seu feito e tudo que Vc ainda tem para fazer, mas certa vez fazendo o Caminho da Fé pela primeira vez saindo de São Carlos sozinho e num calor infernal no meio do verão. Por um descuido acabei pegando uma intoxicação que custou a viagem. Minhas forças foram acabando, minha saúde se esvaindo, mas eu precisava chegar. Eu tinga que chegar e não cheguei. Tive que desistir, pois não tinha condições físicas. Chorei… foi difícil pra mim, pois nunca tinha desistido. Me senti pequeno e fracassado. Demorou um tempo para perceber que Eu tinha ido porque queria apenas andar sozinho de bicicleta sem obrigações, sem competição, sem compromisso. E foi aí que lembrei de tantos outros perrengues que já havia passado e que já estava mais do que na hora de uma hora não conseguir e que no fim e ao cabo só estamos no caminho para viver o caminho e enxergar o que ele está querendo nos mostrar. Simples assim. Não sei bem porque estou te contando isto, Irmão… mas é só o caminho que realmente importa. O seu Caminho, a sua escolha… continue nele, pois ele te fortalece… Bons Ventos. Forte Abraço

    1. pois é PP… De vez em quanto o caldo tem mesmo que azedar… O risco é alto nessas nossas aventuras…e muitas vezes nos sentimos um tanque de guerra… indestrutível, imparável! Mas não somos… e é muito importante ter isso em mente… Já estou restabelecido e continuando o meu caminho! E é isso que importa! Eu entendi bem o que vc quis passar! Tks amigão!

  3. Hi my friend Aurelio , please be careful with your health !!!! Take prefer one or two days time to sleep, food and especially drink ! You need a lot of water and minerals !
    Stay Healthy! Your German friend Ronny the Penguin

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